quarta-feira, 24 de agosto de 2016

MPF e MPT garantem reforma do barco Guató

Barco Guató no porto de Corumbá, reformado, antes da viagem reinaugural
O barco Guató zarpou para a ilha Insua, norte do Pantanal, a 350 km da área urbana de Corumbá, em uma viagem de 36 horas, sem pressa, pelas águas modorrentas do rio Paraguai. Houve tempos em que esse trajeto colocava em risco a vida dos chamados índios canoeiros do Pantanal: em condições precárias, com um buraco no casco, eles passavam a viagem inteira tirando a água que invadia o velho barco. Neste dia 12 de agosto, reformado após passar quatro meses no estaleiro, o barco Guató navegou sem medo. “Graças ao Ministério Público reformamos nosso barco”, disse o cacique Severo Ferreira, enquanto ajeitava os últimos carregamentos antes da viagem “reinaugural” do revitalizado Guató.
De fato, uma ação do Ministério Público Federal (MPF), com recursos financeiros do Ministério Público do Trabalho (MPT), garantiu a reforma do barco que pertence à etnia há mais de duas décadas. “Foi a primeira reforma do barco que ganhamos há 23 anos”, acrescentou Dalva, mulher do cacique. 
Doado aos indígenas pela Miserium, organização não-governamenal alemã, em 1993, a embarcação navegava em condições precárias pelo rio Paraguai. Por falta de manutenção, um furo no casco fazia o porão inundar durante as viagens até a aldeia. O barco ficou meses atracado no porto de Corumbá enquanto aguardava a liberação da verba para entrar no estaleiro. “Estava muito cada vez mais arriscada nossa viagem de ida e volta até a ilha”, comentou Dalva.
Os recursos para a reforma saíram em nome da Associação Guatós de Indígenas Canoeiros do Pantanal, que precisou abrir uma conta na agência do Banco do Brasil. O orçamento da reforma ficou em R$ 130 mil, quantia repassada pelo MPT. Recursos provenientes de multas aplicadas pelo MPT em ações de combate à ilegalidade trabalhista.
O barco serve para transportar indígenas das 45 famílias guatós que habitam a ilha Insua, além de mercadorias. A embarcação foi projetada para navegar com dez pessoas, mas para atender as necessidades dos indígenas foi ampliado, além de receber um motor WM 4 cilindros mais potente, doado pelo governo do Estado há dez anos.
O cacique Severo e sua esposa Dalva, evangélicos, comandam a aldeia Uberaba, onde um dos dezesseis filhos do casal, Zaqueu, é professor. Uma das filhas mora em uma casa da família no bairro Cristo Redentor, reduto de outros guatós que, urbanizados, preferem viver na cidade. Na ilha de Insua, duas centenas deles vivem em comunidade, mas em casas separadas, com uma escola municipal e uma igreja evangélica. Comem o que plantam e colhem, mas também recebem cestas básicas do governo.
Severo e Dalva completam neste ano 50 anos de casados. Integrante do Conselho Municipal Indígena, em 2015 Dalva prestou depoimento à Comissão da Verdade, instalada para apurar crimes no período da ditadura militar. Os guatós vivem em uma área muito inferior à que habitavam originalmente, antes da chegada dos colonizadores, por isso consideram legítima qualquer manifestação para a ampliação do território.

Projeto da UFRJ quer manter viva a língua guató

Cacique Severo e Dalva com os netos no barco Guató
A língua tem sido muito importante para fortalecer a cultura, a formação da identidade indígena e a reconquista de territórios dominados. Por sorte os guatós ganham parceiros para tentar manter viva sua língua, ameaçada de extinção. Nesta primeira viagem do barco reformado seguiu a professora da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Adriana Viana Paravisine, participante de uma oficina de ensino da língua guató em São Lourenço, já no rio Cuiabá, no vizinho Mato Grosso, onde vive outra comunidade guató. A oficina faz parte de um projeto da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), criado pela professora Bruna Fracetto. Mato Grosso do Sul possui a segunda maior população indígena do País, depois do Amazonas. Nas duas aldeias da cidade de Japorã, fronteira com o Paraguai, a 480 km de Campo Grande, capital de MS, 60% da população – 4.500 pessoas - pertencem às etnias guarani-nandeva e guarani-kaiowá, e nas quatro escolas indígenas as aulas são ministradas em português e guarani. La, o coordenador pedagógico da rede municipal de ensino é o professor Joaquim Adiala, que pertence à etnia guarani.

Etnia habita ilha ao lado de batalhão do Exército

Professora Adriana participa de projeto da língua guató 
Os guatós são focalizados no documentário "500 almas", do diretor Joel Pizzini, de 2005. Eles perderam suas terras e foram considerados equivocadamente extintos nos anos 70, até serem redescobertos por uma freira salesiana em Corumbá, e em 1998 tiveram território demarcado pela Funai na ilha Insua. Na aldeia funciona a Escola Municipal Indígena João Quirino, nome em homenagem ao líder guató que morreu aos 116 anos de idade. Historiadores e memorialistas registram a presença da etnia guató em terras de Mato Grosso do Sul e Mato Grosso desde o século XVI. Assim como outras etnias, os guatós foram expulsos de suas terras, ocupadas por fazendas de gado, que avançaram na região a partir de 1940. A aldeia Uberaba hoje ocupa 10.900 hectares, que agora dividem com um batalhão do Exército, no Pantanal norte, fronteira com a Bolívia. Pontos de honra para a etnia guató são o trabalho artesanal com o uso de madeira e talos de camalote (aguapé), vegetação nativa do rio Paraguai, e a construção de canoas de um pau só, ou seja, esculpidas em um tronco de árvore – tanto é assim que ficaram conhecidos como “os últimos índios canoeiros do Pantanal”.