terça-feira, 12 de setembro de 2017

Na 'europeia' Argentina, índios invisíveis são 950 mil

Palestra na UFMS mostra realidade argentina na relação com migrantes
Nelson Urt

Em Corumbá, as antropólogas argentinas Gabriela Novaro e Ana Carolina Hecht ajudam a esclarecer alguns pontos obscuros ou completamente desconhecidos para nós brasileiros em relação ao país vizinho. Sim, grande parte dos argentinos se considera "europeu" por influência do imigrante na formação da população até o século XIX e pelo desejo de desvincular seus laços com o restante da América Latina."O eurocentrismo ainda é muito forte, principalmente na Grande Buenos Aires", afirma Gabriela Novaro, com base em recente pesquisa. Portanto, não se trata de mero senso comum. Some-se a isso a onda de neoliberalismo que também domina a Argentina e a febre nacionalista que vê em todo imigrante o "outro" que vem para "roubar" postos de trabalho e teremos uma situação constrangedora para os povos indígenas e migrantes bolivianos que vivem na Argentina.
Outro mito que cai por terra graças aos estudos antropológicos é de que não há mais indígenas na Argentina. O Censo de lá cadastrou cerca de 950 mil indígenas (mapuches, m'bya guarani, tobas, collas, matacos, chiriguanos), quase o mesmo número registrado pelo Censo do IBGE 2010 para o Brasil. Esqueça portanto aquele senso comum de que todos os indígenas que viviam na Argentina foram dizimados pelos colonizadores - essa é mais um história distorcida inventada pelas classes dominantes para passar uma borracha no passado dos povos originários. Lembre-se: ninguém quer dividir um palmo sequer de terra com os indígenas. E, como o Brasil, a Argentina também é o país do agronegócio. Há uma aldeia da etnia toba na Grande Buenos Aires. E eles ainda cultivam a língua toba, apesar de todo o empenho das políticas públicas de fazê-los falar apenas o espanhol, a língua dominante.
Antropóloga Ana Carolina Hecht fez palestra em Corumbá
Os brasileiros acreditam que a onda de migração de bolivianos, em busca de trabalho, passa por Corumbá e chega a São Paulo. Outro mito derrubado pelas antropólogas. A presença de bolivianos na Argentina é tão forte quanto no Brasil. Ocorre que eles são tratados como "invisíveis", migrantes indesejáveis, discriminados pela política neoliberal eurocentrista. "Há uma inclusão subordinada", diz Ana Carolina Hecht. A capa de uma revista reflete o que parte da imprensa local pretende difundir: "Invasão silenciosa", diz a manchete, com a imagem de um homem desdentado, com ar aterrorizante, ameaçador, representando a onda de migração.
Como os 20 mil bolivianos de São Paulo vivendo a 1,2 mil km da fronteira, a Argentina convive com o mesmo fenômeno em Buenos Aires, distante por exemplo da fronteiriça Salta. E lá os traços da xenofobia também estão presentes: "Argentino com fome, boliviano em (caminhonete) 4 por 4", escreveu um xenófobo na poltrona de um ônibus comercial em Buenos Aires, em imagem colhida pelas antropólogas.
Argentinos que se auto-imaginam brancos usam a expressão "cabecitas negras" para se referir a pobres da periferia, sejam indígenas, bolivianos ou paraguaios. No século XX serão os paraguaios os responsáveis pela maior onda de imigração na Argentina.
Esses e outros temas angustiantes nas relações humanas foram abordados pelas antropólogas e professoras da Univerisdade de Buenos Aires Gabriela Novaro e Ana Carolina Hecht durante a palestra "Educação, povos indígenas e migrantes na Argentina" na unidade III do Campus Pantanal (Universidade Federal de Mato Grosso Sul), em Corumbá, nesta segunda, 11 de setembro, com coordenação do professor Marco Aurélio Machado, do Mestrado em Estudos Fronteiriços do CPAN.