quarta-feira, 10 de setembro de 2025

Miguelito, o menino da Vila, derruba o Brasil do altar

NELSON URT/NAVEPRESS

Confesso que planejei ver o jogo pessoalmente nas arquibancadas do estádio Titán de Vila Ingenio, o estádio mais alto do mundo, nos 4150 metros de altitude de El Alto, na cordilheira da Bolívia. Mas não consegui, e acompanhei o jogo aqui embaixo, na planície do Pantanal, nas bordas do rio Paraguai, em Ladário. Mesmo distante do temido Titán, observei um raro fenômeno por aqui: o espocar de fogos quando Miguelito marcou o gol que deu a vitória para a Bolívia diante do Brasil. Uma vitória, como disse em manchete o boliviano El Deber, de “puro corazón”, que coloca a Bolívia às portas da Copa do Mundo de 2026 (está qualificada a disputar um torneio complementar com outras cinco equipes e buscar uma das duas vagas restantes). Outra surpresa para os menos informados é que o herói do jogo, um menino de 21 anos, Miguel Angel Terceros, número 7 na camisa, é o que chamam de “Menino da Vila”. Embora tenha nascido em Santa Cruz de la Sierra, foi descoberto pelo Santos aos 14 anos durante uma excursão do Projeto Bolívia na Vila Belmiro, passou nos testes e ganhou um contrato até 2027. Por uma série de motivos, inclusive por questões familiares, não se firmou no time principal e hoje disputa o Campeonato Brasileiro da Série B pelo América Mineiro, por empréstimo (ou seja, o Santos esconde na segunda divisão uma jóia da casa). Mas na Bolívia, depois de altos e baixos, hoje Miguelito é o dono da camisa 7, um ponta canhoto que cai para o meio e finaliza muito bem, e se tornou o artilheiro do time e terceiro goleador das Eliminatórias: nessa terça, marcou seu sétimo gol. Comentaristas influentes culpam a Bolívia por ter levado o jogo para a altura insuportável do Titán de El Alto, um ato desumano contra o escrete brasileiro e outras seleções que foram jogar lá e também apanharam. Juca Kfouri, em trocadilho infame com o nome de Miguelito (e com todos os meninos de nome Miguel), afirmou que a Bolívia deu uma de “migué”. Outro influente, Mauro César, aponta como defeito o fato de o VAR ter descoberto um pênalti para “garfar” a Venezuela (garfar Maduro, ele quis dizer, em clara alusão a uma teoria da conspiração acionada por Donald Trump na guerra fria contra a Venezuela). O fato é que a Venezuela perdeu a vaga ao cair por 6 a 3 diante da Colômbia, no mesmo horário, dentro de casa. Após ver e ouvir tantas aberrações, fico a matutar se os mesmos comentaristas se esqueceram dos tempos em que a Bolívia era governada por ditadores militares aquartelados em Santa Cruz e nas Eliminatórias a Seleção Brasileira ganhava, passeava e exibia sua beleza nos jogos contra a Bolívia – sempre em Santa Cruz, é claro. O fato é que os bolivianos, que sempre tiveram o Brasil como segunda opção para torcer – porque a Bolívia não vai à Copa desde 1994 – ganharam uma rara oportunidade de comemorar uma vitória épica contra o Brasil, com espocar de fogos nos dois lados da fronteira: em Puerto Suarez, Puerto Quijarro, Corumbá e Ladário. Se quiserem, podem botar na conta do Titán, do VAR, do balão de oxigênio, das bolas furadas...mas não se esqueçam de Miguelito, o menino da Vila, e do puro corazón de jogadores bolivianos que choravam ao ouvir o hino do seu país e o grito dos torcedores. Puro corazón. Será que não é isso que anda faltando ao Brasil?

 

 

 

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

Maria, Carnaval e cinzas...e feminicídio



Nelson Urt/Navepress

No dia 8 de março, quatro dias após o encerramento do Carnaval, convém substituir os confetes e serpentinas por momentos de discussão social, reflexão e atitudes diante de um problema que afeta diretamente brasileiras e brasileiros: o feminicídio. É hora de falarmos de cinzas, da Lei Maria da Penha, das leis que não são cumpridas, da normalização do ódio.

Nesta data oficialmente se celebra o Dia Internacional da Mulher. Mas, em vez de entregarmos ramalhetes de flores e bombons às mulheres de todas as classes, gêneros e profissões, propomos marcar a data entregando um pacote com pertinentes debates que nos levem a conclusões e soluções para uma questão de enorme gravidade em nosso País: o crescente número de mortes violentas contra mulheres por questões de gênero.

Neste começo de ano de 2025, foram dois casos e um dos crimes de ódio vitimou a jornalista Vanessa Ricarte, assessora de comunicação do Ministério Público do Trabalho de Mato Grosso do Sul, na capital Campo Grande. Vanessa procurou a Delegacia da Mulher para relatar perseguição do ex-noivo e pedir medida protetiva. Estava fora de casa havia dois dias. Ao voltar para a casa compartilhada com o parceiro para pedir sua saída, foi morta por ele com três facadas. Ficou mais uma vez evidente o despreparo de policiais no trato com casos como esse, em que o homem, autor das ameaças, continua sendo substimado. O crime ocorre quando a vítima está desprotegida, dentro de casa, a covardia é recorrente nesse tipo de assassinato.

O feminicídio coloca o Brasil na 5ª posição no ranking mundial, atrás apenas de El Salvador, Colômbia, Guatemala e Rússia. Em comparação com outros países, aqui se mata 48 vezes mais mulheres que no Reino Unido, 24 vezes mais que na Dinamarca e 16 vezes mais que no Japão, de acordo com dados do Alto Comissariado das Nações Unidades para os Direitos Humanos.

Em 2020, segundo o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, foram registradas 105.821 denúncias de violência contra a mulher através do Ligue 180 e do Disque 100. O número representa um chamado a cada 5 minutos.

A legislação que incluiu o feminicídio como qualificadora do crime de homicídio - Lei nº 13.104 - data de março de 2015, tendo o Brasil sido o 16º país da América Latina a criar a legislação.

Mato Grosso do Sul é um dos estados brasileiros onde mais ocorrem feminicídios. De janeiro a novembro de 2024, MS registrou 31 feminicídios e 78 tentativas de morte contra mulheres por questões de gênero, conforme dados da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública divulgados pelo Observatório da Mulher de Campo Grande. Nesse período, só a Capital somou 9 assassinatos e 15 tentativas.

Uma nota de pesar do Fórum Permanente de Entidades Não Governamentais de Corumbá e de Ladário, Pacto pela Cidadania e do Comitê Corumbá pela Paz repudia o crime contra a jornalista e a escalada da violência contra as mulheres.

O professor e historiador Ahmad Schabib Hany, do Pacto pela Cidadania, pede mobilização para deter a normalização do ódio: “Nossos Espaços Públicos não Estatais em Corumbá e Ladário entendem que devemos nos mobilizar, e convocamos a sociedade civil em todo o estado a se posicionar de forma altiva e contundente contra a postura procrastinadora e prevaricadora dos responsáveis pelos órgãos que deveriam assegurar direitos consignados na Constituição e em leis há décadas sancionadas e implementadas, como a própria Lei Maria da Penha.”

(Charge: Latuff/2013)