domingo, 4 de junho de 2017

Criminalizados, nossos jovens estão morrendo à bala

Grafite em muro de uma escola da rede pública em Ladário-MS, de 2017
Nelson Urt

Por muito tempo tentaram convencer a população que o Brasil é um país cordial, acolhedor, solidário, com igualdade racial e onde prevalece a cultura da paz. É hora de rever esses conceitos. A imagem do país do futebol, da mulata e do carnaval que por muito tempo as elites dominantes venderam para o exterior como forma de atrair turistas e seus dólares é um processo em desconstrução. Não tem mais como dissimular.
A máscara caiu, fazia parte de uma fantasia, criada pelo Estado para construir um modelo de Nação do novo mundo por meio de uma história alienante. "Dessa forma, a história pode adquirir um caráter de fuga, ao invés de caráter integrador" (Pinsky, 1992). 
Até mesmo a ideia de “país da juventude” tentaram emplacar como forma de transmitir uma dádiva que, na prática, nunca tivemos, ou seja, o respeito aos jovens, independentemente de sua classe social, de sua cor, de sua religião.
Outro slogan famoso que tentaram nos meter goela abaixo é de que moramos no “país do futuro”. Este é um artifício raso de virar as costas aos problemas do presente e vislumbrar somente o abstrato, o que ainda virá pela frente, tratando a vida como uma ideia, nunca como realidade.
Olhando para o presente, vemos um quadro estarrecedor para nossos jovens. Eles estão literalmente morrendo à bala. Que país é este? Do futuro? Da juventude? Um país onde por ano morrem mais de 25 mil jovens na faixa etária entre 15 e 29 anos de idade por homicídio com arma de fogo. Mais exatamente 25.255, conforme nos revela o Mapa da Violência 2016 divulgado recentemente pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (veja matéria completa no site www.navepress.com.br)
Os números do Mapa da Violência refletem a herança de 20 anos de ditadura e uma sequência de governos e desgovernos corruptos, o uso indevido das verbas públicas e a ausência de uma verdadeira política que fortaleça a educação. A tentativa de reduzir os índices de pobreza, de elevar o poder de acesso à educação e cultura, de tornar protagonistas as classes desfavorecidas, foi ceifada por mais um golpe.
Longe de usar os índices apenas como munição barata para tripudiar a imagem do país, o que me interessa é levar nossos jovens à reflexão sobre como chegamos ao ponto de nos tornarmos o décimo país mais violento do mundo quando se trata de homicídios com arma de fogo, enquanto nossos políticos e economistas, capitalistas, insistem em bater na tecla de que somos uma potência emergente, democrática, navegando nas águas do neoliberalismo global.
Quem retrucar a esses números e apontar as favelas e os traficantes que tomam conta dos morros do Rio de Janeiro como causadores de tão volumosos índices vai perder tempo. A culpa não é do Rio, nem de São Paulo, nem das grades metrópoles. Muito pelo contrário: com a taxa de 21,5 mortes por cada 100 mil habitantes, o Rio de Janeiro é apenas o 15º Estado em homicídios por arma de fogo no país. E São Paulo, que pode ser considerada um caldeirão, possui hoje taxa de 8,2 e está entre as quatro menos violentas da lista.
Os Estados de maior violência homicida são, pela ordem, Alagoas, Ceará e Sergipe. Estados pobres. A capital mais violenta nesses quesitos no pais é Fortaleza. E a cidade com maior número de vítimas por homicídios à bala é Mata de São João, na Bahia.
O Brasil vive uma epidemia de homicídios por arma de fogo, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS). Por quê? É preciso responder por quê? Concentração de renda, desigualdade social, desemprego, apenas para citar o básico. Mas especificamente com relação à juventude, há uma onda de criminalização do jovem. Para ser mais exato, o jovem negro e pobre. Ser pobre e negro hoje no Brasil metido a nobre, branco e rico é um castigo muito pesado. Para esses, o “país da juventude” fica em outro lugar do planeta, menos aqui.
Os números do Mapa da Violência são claros ao apontar que morrem 2,6 vezes mais negros do que brancos em homicídios com arma de fogo.
Em violência homicida por arma de fogo o Brasil teve 44.861 mortes em 2014 e ocupa pior situação que os vizinhos Argentina, Chile, Peru e Bolívia. E também perde para Cuba, que possui os mesmos índices de países europeus como França, Noruega, Suécia: apenas 0,2 mortes por cada 100 mil habitantes. 
Não era para Cuba que deveriam rumar os brasileiros descontentes, com ideias socialistas? Pois é, pelo menos na ilha, “pobre, comunista e decadente”, jovens negros não são criminalizados. E muitos estão se tornando médicos.
No "livre e democrático" Brasil, os homicídios à bala fazem 123 vítimas por dia, cinco a cada hora, e assim supera países europeus onde frequentemente ocorrem chacinas, atentados e guerras civis.
Experimentamos nosso próprio veneno. O Brasil é o quarto maior exportador de armas de fogo no mundo, atrás apenas de Estados Unidos, Itália e Alemanha. Portanto, uma potência internacional nesse quesito. Trocaríamos esse status por mais educação.
Vivemos, de fato, em um país militarizado, onde forças armadas agora são enviadas às ruas para deter manifestações populares e onde a polícia recebe ordens para invadir moradias da periferia em busca de criminosos, enquanto balas perdidas, ou com endereço certo, tiram a vida de trabalhadores, estudantes, crianças. E a vítima é quase sempre é a mesma: o brasileiro jovem, pobre e negro.
Chegamos a um ponto em que precisamos rever conceitos e reescrever a nossa história com um profundo processo de mudanças sociais. O país que temos não é o país que queremos. Chega de fantasia, de decretos megalomaníacos, de malversação dos recursos públicos, de boicote à educação dos nossos jovens.

REFERÊNCIAS
PINSKY, Jaime, p.18, 1992, O Ensino de História e a criação do fato, Editora Contexto

Leia mais a respeito em: http://www.navepress.com.br/VIOLENCIA.php