terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

O samba e a profecia: “Eu era feliz e não sabia”

Ana Paula e Helinho Pão de Mel (Agência Navepress)
Não sei o que um certo jurado viu de tão ruim no samba-enredo da Pesada. Gostei do samba desde a primeira vez que o ouvi durante um ensaio no barracão da escola, enquanto entrevistava o presidente Nei Colombo. Portanto, não me deixei influenciar pelo que decidiria dias depois os críticos do Esplendor do Samba, o prêmio criado pela jornalista Rosana Nunes, que elegeu a composição como a melhor do Carnaval. Comparei-o com os sambas de outras escolas e conclui que, de fato, foi o melhor do Carnaval. O samba-enredo da Pesada é um resgate histórico a dois dos principais poetas da literatura e da música popular brasileira de todos os tempos, Casimiro de Abreu e Ataulfo Alves. “Meus oito anos” é a mais famosa obra de Casimiro: “Oh! Que saudades que tenho, da aurora da minha vida; da minha infância querida, que os anos não trazem mais”, descreveu. E o célebre verso de Ataulfo Alves, “Eu era feliz e não sabia”, da música “Meus tempos de criança”, virou refrão nacional. Ataulfo também é autor de Laranja Madura, Leva meu Samba, Atire a Primeira Pedra e outros mais de duzentos sucessos do samba e dos carnavais. Sim, poucos como eles souberam exaltar tão bem a pureza e a docilidade das crianças, da gente humilde e pobre – por isso mesmo serviram para ancorar o enredo e o samba da Pesada. Mas os jurados não entenderam assim. Numa escala de 9 a 10, o samba ganhou nota 9 de um deles, ou seja, a nota mínima, que ajudou a derrubar a escola. Não me convenceu a justificativa da chefe do Corpo de Jurados de que os compositores falharam ao não citar nominalmente Casimiro e Ataulfo na letra do samba. Foram citados implicitamente, sim, com a força dos seus versos. Tanto que, seguindo essa linha de raciocínio, outro jurado deu a nota 9,9 ao samba-enredo da Pesada, quase a nota máxima. Portanto, dividiu opiniões e critérios, ao contrário do samba-enredo da Vila Mamona, que mesmo sendo inferior ao da Pesada ganhou duas notas 10. Além do samba-enredo, outros dois quesitos derrubaram a Pesada neste Carnaval: comissão de frente (notas 9,1 e 9,8, no total 18,9) e evolução e harmonia (9,6 e 9,3, total 18,9). Até o próximo Carnaval chegar, só resta à comunidade Pesada cantar “eu era feliz e não sabia”. O samba era uma profecia.


quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Por que a bicampeã Pesada virou cinzas no Carnaval?

O requinte da Pesada não agradou aos jurados (Agência Navepress)
Era uma vez uma escola de samba que pecou por desfilar como campeã e, em um julgamento equivocado, foi queimada na fogueira da inquisição. Desculpem-me recorrer aos tempos em que a Igreja fazia a caça às bruxas – ou a quem acreditasse que agisse como tal – mas é exatamente assim que vejo e analiso a situação da Pesada, despachada para o segundo grupo do Carnaval de Corumbá após brilhar na avenida como forte candidata ao título de tricampeã. Nesta quinta-feira, ao visitar o barracão da escola, vi a profunda tristeza nos olhos de Nei Colombo, seu presidente. O trabalho de um ano inteiro saiu pelo ralo, lamentava, melancólico. “Dá vontade de abandonar tudo”.. O dia seguinte de Nei a da comunidade Pesada teve as nuvens cinzas do apocalipse, o ar de uma suposta chantagem e o som de uma marcha fúnebre. Para os jurados, a Pesada foi pior que a Marquês de Sapucaí, que fez um desfile apenas discreto para homenagear Valdir Gomes e Picolé, e não cair, mas ganhou notas acima da média, embora não tenha chegado sequer a uma final no Esplendor do Samba, prêmio instituído pela jornalista Rosana Nunes. Entre tantas aberrações, a Mocidade Independente da Nova Corumbá, com um desfile de alto nível em homenagem à Marinha, ainda ficou atrás da Marquês, e escapou de ser rebaixada. Conferi nota por nota na planilha da minha amiga carnavalesca Regina Narciso. São dois jurados para cada quesito. Um dos jurados derrubou a Pesada ao dar-lhe apenas 9 no samba-enredo, o mesmo quesito que deu à escola o prêmio Esplendor do Samba. Estaríamos vendo dois carnavais ou os jurados vieram de outro planeta? Parabéns à Império do Morro e à Vila Mamona, que fizeram, e muito bem, a sua parte, honrando mais uma vez suas tradições. A Império veio com um enredo que sempre toca no coração das pessoas decentes e responsáveis: a preservação do planeta. Mas eu ainda aponto o enredo da Vila Mamona como o melhor deste Carnaval pela coragem de abordar um tema cercado pelo preconceito da elite corumbaense: a umbanda e o candomblé como forma de espiritualidade das mulheres (e famílias) negras. No momento, acho que o Carnaval de Corumbá não está precisando de um sambódromo ou sair da Avenida General Rondon para progredir, como sugerem alguns. Está, isto sim, precisando urgentemente se reorganizar e valorizar a sua própria matéria prima, que são as escolas e seus sambistas. 

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

A espiritualidade da mulher negra no Carnaval

Há décadas o Carnaval de Corumbá não reunia tantas escolas com potencial para conquistar o título, e quem ganha é o público, que esperou pacientemente durante seis horas para ver todas elas passarem pela avenida. No desfile encerrado às 3h25 da madrugada desta terça-feira, A Pesada, Império do Morro, Mocidade Independente da Nova Corumbá e Vila Mamona mostraram que estão separadas apenas por um fio nas mãos dos jurados, que escolherão uma campeã. Como se os deuses do Carnaval assim quisessem, a chuva só começou a cair depois que as últimas alas da Vila Mamona cruzaram a avenida. Coincidentemente, o tema da Vila, que reverenciava as lutas da mulher negra, também evocava deuses das religiões africanas. Orixás femininos como Oxum, a deusa da beleza, da fertilidade e maternidade, apareceram nas fantasias das baianas. Ou no carro que reproduziu a casa de madeira da umbandista Cacilda, famosas por seus passes e consultas espirituais até os anos 70 em Corumbá. No camarote da imprensa, disseram-me que o tema da Vila Mamona não havia sido bem recebido por relacionar a mulher negra à umbanda e candomblé, mas vejo que, pelo contrário, esta é a verdadeira história que precisa ser contada à nova geração para eliminar de vez o preconceito contra as religiões de origem africana, trazida e mantida por negros que viraram escravos. Lembrar Cacilda e as filas que se formavam em frente à sua modesta casa em busca de um passe é resgatar a história da religiosidade corumbaense. É explicar porque hoje a maioria dos festeiros de São João e São Pedro é dona de terreiros de umbanda e candomblé. Pode ser uma questão de raízes familiares ou de simples escolha, não importa, é um caminho de espiritualidade que deve ser respeitado. É senso comum ir para a avenida com temas politicamente corretos, mas o difícil é lançar uma provocação, um debate, uma nova proposta, e reconstruir uma história perdida e mal interpretada. E o Carnaval é palco para a arte de criar, pensar, renovar. Parabéns à Vila Mamona pela coragem e pela volta, por cima, para o Grupo Especial.

domingo, 15 de fevereiro de 2015

Sangue, suor e saúde da Imperatriz

Cecília Sant'Anna, rainha da bateria da Imperatriz (Agência Navepress)
Eram duas horas em ponto da madrugada desta segunda de Carnaval quando a garoa começou a molhar os paralelepípedos e o asfalto da avenida General Rondon, já no final do desfile da Marquês de Sapucaí, que abriu as apresentações do Grupo Especial em Corumbá. Mas o que me chamou mais a atenção foi a exibição da Imperatriz Corumbaense. A escola inovou  ao trazer para a avenida um tema palpitante e atual, mas que já possui sua breve história: a luta contra o câncer. Um tema que tem tudo a ver com a saúde nos lares brasileiros. É uma forte candidato ao título do Grupo de Acesso. A verdade é que a Imperatriz causou impacto com imagens fortes como a de Rosa Mavigner, a paciente que criou o lenço como símbolo da campanha contra o câncer, e veio num carro alegórico. Elton e Lindinha, mestre-sala e porta-bandeira, representaram a radioterapia. Os 50 ritmistas da bateria se vestiram como os glóbulos vermelhos do sangue, da hemoglobina. E a rainha da bateria Cecília Sant’Anna surgiu com uma fantasia exuberante também em tom rubro que me trouxe as melhores recordações da maravilhosa Carol Duarte, estrela maior por muito tempo na Império do Morro. Rainha da bateria não conta ponto para efeito de jurados, lembra-me, ao meu lado, Arturo Ardaya, coordenador do Conselho Municipal de Cultura, que não perde um só lance deste Carnaval com sua intrépida lente digital. Rainha serve apenas para animar a escola, acrescenta. No caso de Cecília, sobrou animação, luxo, beleza e simpatia, que podem empurrar a Imperatriz rumo ao Grupo Especial.






A sensualidade da dança oriental na avenida

Ana Paula Honório e suas alunas da dança do ventre (Agência Navepress)
O desfile do Clube dos Sem termina quase às 3h da madrugada deste domingo, quando as arquibancadas já estão quase vazias, mas a praça Generoso Ponce está super lotada de gente esperando começar o show popular no palco. Havia pouco público também para ver o Flor de Abacate abrir o desfile dos blocos oficiais. É preciso consultar a população para saber o que ela quer e direcionar o Carnaval, talvez condensar o desfile de blocos ou dividi-los em duas noites. Fiquei impressionado com o desfile do Vitória Régia, puxado por um time de onze maravilhosas dançarias, coordenadas pela professora Ana Paula Horório. Um show de leveza e sensualidade. Mais um resgate da feminilidade contida na dança do ventre, tema muito bem escolhido pelo Vitória Regia e que pode dar-lhe o título deste Carnaval, com o devido respeito aos demais blocos. A dança oriental é sensual mas não é vulgar, e depende muito de quem a conduz, me diz a professora Ana Paula, após o desfile. Dança vista como erotizante e provocativa, proibida em alguns países, na verdade guarda o segredo do sagrado feminino. De fato, é uma dança que carrega por trás toda uma história. Nasceu lá pelos idos de 5000 a 7000 anos antes de Cristo. Propagou-se entre os povos do Egito, Grécia, Mesopotâmia, Babilônia. Expandiu-se pelo mundo árabe. Era usada para preparar as mulheres por meio de rituais religiosos para se tornarem mães. Além de trazer benefícios físicos progressivos, proporciona a expressão dos sentimentos. Com todos esses ingredientes, o compositor Sandro Nemir bolou o samba-enredo que, entre outras coisas, cantava: “Em mil e uma noites, requebrando sem parar, é a charmosa dança do ventre, na passarela a brilhar”. E lá se vão as onze bailarinas requebrando com a sinuosidade de onze serpentes para a apoteose na avenida. Quem disse que o Carnaval não consegue unir o sensual ao sagrado, sem se vulgarizar?





sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Cibalena, a cara do Carnaval de Corumbá

A pirata Dany e suas doces amigas no Cibalena (Agência Navepress)
Quase 1h da madrugada deste sábado e acabo de sair da avenida General Rondon, onde vi o bloco Cibalena passar. Um mar de gente. Quanto mais passava, mais chegava, parecia um mar sem fim – sem exagero. Até os jornalistas mais veteranos como Silvio Andrade, ao meu lado, se surpreenderam com a multidão, que não caberia nas arquibancadas do Estádio Arthur Marinho. Perto de 30 mil pessoas, arrisco a dizer, recorrendo à minha experiência em coberturas de outros carnavais e campeonatos de futebol. Mas não falo apenas em quantidade. Falo em qualidade. Pelo menos durante aquela uma hora que permaneci ali no palanque da equipe do Conselho Tutelar vendo a onda de gente passar, não vi sequer uma briga, sequer um bate-boca. Também não vi briga na concentração. Um Carnaval ordeiro – como diziam os velhos, antigamente – apesar de muitos encherem a cara. Definitivamente, o Cibalena é a cara do Carnaval 2015 de Corumbá. Um carnaval que cresce voluntariamente como este bloco de sujos que nasceu em um buteco de esquina ali na rua Ladário, entre meia dúzia de amigos, e hoje conta com uma legião de seguidores e admiradores. É o jeito despojado de fazer Carnaval, sem as amarras oficiais, nada engessado. Homens travestidos de enfermeiras, de paquitas, de bailarinas do can-can, de batom, peruca e salto alto. Mulheres de policiais do Bope, de piratas, de qualquer coisa que provoque fetiche. Cibalena também é família. Heraldo Cunha levou mulher, filhos, filhas e amigos, umas dez pessoas, todas vestidas de "Idade da Pedra", e ganhou o tradicional Desfile de Fantasias do Cibalena, que tem como pista a carroceria de uma caminhão. Sempre cabe mais um no bloco do Cibalena. Tanto que neste ano o potencial do bloco acabou sendo substimado e a organização ficou pela metade. Um carro de som do trio elétrico foi pouco. A outra metade da multidão que veio atrás ficou sem som e sem música para dançar. O bloco cresceu mais do que imaginavam. Esqueceram que, em tempos de crise e com muitas cidades sem Carnaval, todos vieram curtir a melhor e maior festa do Centro-Oeste. E o Cibalena refletiu, em dose múltipla, toda a animação, o fogo, a paixão de foliões que se entregam de corpo e alma à alegria do Carnaval. Não vi brigas, mas vi beijos roubados. Mas, podem crer, o rapaz pediu licença à moça antes de tacar-lhe um longo beijo na boca no meio da multidão no final do desfile do intrépido Cibalena na avenida. Beijo correspondido. Porque tudo é Carnaval!


domingo, 8 de fevereiro de 2015

Mahikari: caminho para potencializar a vida

O Carnaval fervilha em Corumbá e faltam poucas horas para o começo do Ensaio Técnico, o desfile deste sábado em que as escolas de samba esquentam tamborins e reco-recos para o grande dia da apresentação na passarela do samba. O Sandália de Frei Mariano sai na quarta, Chupeta na quinta, Cibalena na sexta e vamos nesse embalo até quarta-feira de cinzas, o dia da apuração das escolas vencedoras do Carnaval. Mas entre um bloco e outro, nos concedemos uma pausa para pensar. Nesses dias de folia é possível pensar na vida? Sim, claro, é possível. O que ocorre com o mundo? Terrorismo com métodos selvagens, corrupção na megaestatal do petróleo, desvio de verbas, quem diria, da Cultura de Mato Grosso do Sul, falta d’água e de vergonha na cara na maior metrópole do Brasil, desequilíbrio climático, surto de assaltos a mão armada, crimes passionais e suicídios – parar para pensar dá medo, calafrios, mas é preciso. A pausa é essencial para refletir, para uma autocrítica sobre a maneira de agir, de opinar, de conduzir a vida de cada um de nós. Fala-se muito em mudança de atitude. Mas como mudar? Neste sábado sem chuva, descendo a ladeira até o Porto Geral, na Unidade 3 da UFMS, acompanho a palestra da Arte Mahikari ao lado dos amigos acadêmicos Nathalia Claro e Willian Nogueira. E ouço o orientador Nelson Teruya afirmar que a Mahikari potencializa a vida e otimiza o tempo. Estamos acostumados, diz ele, a olhar apenas a parte de cima da árvore, com seu tronco, ramos e frutos, e nos esquecemos das raízes que a sustentam e a mantém bonita e frondosa. As raízes são a parte espiritual. Sem elas, não há árvore, não há frutos, não há vida. E a Mahikari prega o princípio da árvore da vida – que coloca o espírito (a raiz) como principal. A mente obedece, o corpo acompanha. Prega que busquemos soluções espiritualistas para solucionar os conflitos materiais. E oferece os ingredientes, ensinando às pessoas a arte da transmissão da energia positiva pela imposição da mão. Como na origem dos tempos. Simples, prático, eficaz. Para aprender a purificar o aspecto espiritual existe um seminário que começa na sexta à tarde e termina domingo ao meio-dia. Será nos dias 20, 21 e 22 de março em Corumbá. As inscrições estão abertas. Há dez vagas para a cidade. Eu sempre soube que o Carnaval é uma maneira de ser feliz em fevereiro, mesmo diante de tantas catástrofes ao nosso redor. E também passei a entender que a Arte Mahikari é um caminho que nos guia para a felicidade permanente, o ano inteiro, a vida inteira. Pensando bem, é uma luz que surge na linha do horizonte. No fim do túnel.