As relações de poder no reino das falcatruas
Novo
livro de Adelto Gonçalves revela subterrâneos da capitania de São Paulo no
governo LorenaLivro de 405 páginas focaliza SP no período colonial
Nelson Urt
Um escândalo: o caso das arcas que ao serem abertas diante do rei continham chumbo no lugar de ouro. Um profano: o frei capuccino que usava o dinheiro das esmolas para levar confortável vida de senhor de escravos. Uma caçada: a perseguição aos irmãos Leme, aos quais o governo atribuía uma lista de crimes em Cuiabá e Itu. Uma amante: Lorena era filho dos Távora ou fruto de um envolvimento adúltero do rei?
Fascinantes
histórias de conflitos, perseguições e falcatruas percorrem os subterrâneos,
mas vem à tona em cada capítulo de O reino, a colônia e o poder – O governo de
Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imprensa Oficial do Governo do
Estado de São Paulo, 2019) graças à astúcia investigativa de quem já frequentou
as principais redações de jornais de São Paulo, como o escritor Adelto
Gonçalves.
Adelto: faro de repórter e texto elucidativo |
A
construção da Calçada do Lorena, estrada que ligava São Paulo a Santos por um
trecho da Serra do Mar, é a marca principal do governo de dom Bernardo José
Maria da Silveira e Lorena. Mas o livro vai muito além das edificações e
estratégias para permitir que São Paulo fique mais próxima da Coroa, driblando
a interferência econômica e política do Rio de Janeiro - ao reunir episódios do
recorte de nove anos do governo Lorena em São Paulo.
Lorena
foi o mais jovem capitão-general a governar a capitania de São Paulo: tinha 32
anos ao desembarcar e tomar posse em julho de 1788. Seria filho de Nuno Gaspar
de Távora, irmão do marquês de Távora, e de sua segunda mulher e cunhada, dona
Maria Inácia da Silveira. É o que diz seu assento de batismo, lavrado em
Lisboa, segundo o autor. Faria parte da primeira nobreza portuguesa com
ascendentes em uma das mais distintas famílias da França, os Lorena. Pelo menos
era essa a informação oficial porque sempre correram rumores de que seria filho
adulterino do rei dom José I com sua amante, a marquesa Teresa de Távora e
Lorena, esposa do jovem marques dom Luis Bernardo de Távora.
Baseada
em primorosa documentação histórica, o autor desvela as raízes da corrupção e
malversação do dinheiro público no Brasil em uma situação análoga aos tempos
atuais de um País que parece condenado a viver preso ao passado tortuoso da
Colônia e à cultura da propina, do suborno e da barganha.
Nesse
aspecto, há o risco de vermos a corrupção como fruto exclusivo da política,
conforme alerta o sociólogo Jessé de Souza em A elite do atraso (2017). “A
população (...) foi convencida de que existe corrupção apenas na política –
essa é a corrupção dos tolos – e não enxerga a corrupção real, a corrupção no
mercado, o problema central, que é a manutenção de uma sociedade desigual”,
afirma.
A
capitania passou nas mãos de antecessores pouco confiáveis antes da chegada de
Lorena. Um deles foi Antônio da Silva Caldeira Pimentel, um dos raros governadores
coloniais que se transferiram para o Brasil com a família, conforme revela o
autor. Pimentel chegou em 1727 e um ano depois já estourava o escândalo que
apressaria sua queda. “Em Lisboa, quando as autoridades metropolitanas, à
frente de dom João V, abriram arcas recém-chegadas do Brasil com 7 arrobas de
ouro dos quintos reais, descobriram, estupefatas, que ali só havia chumbo”.
Obra de Pimentel e seus protegidos, entre eles Sebastião Fernandes do Rego,
definido pelo historiador Afonso de Taunay como “aventureiro da pior espécie”.
O
ouvidor-geral da comarca de São Paulo, desembargador Francisco Galvão da
Fonseca, abriu a devassa para apurar os nomes dos responsáveis pelo descaminho.
Logo as suspeitas pairaram sobre homes de confiança do governador Pimentel,
conforme descreve o escritor. “Mas a corrupção era praga tão disseminada por
todo o corpo do Estado que o primeiro a cair foi o próprio ouvidor-geral
Fonseca, suspenso de suas funções e preso por ordem do juiz do Fisco do Rio de
Janeiro. Era acusado de numerosas falcatruas”, conta Adelto Gonçalves.
O
juiz de fora da vila de Santos, Bernardo do Vale, assumiu as investigações e
concluiu que o autor do delito havia sido Sebastião Fernandes do Rego, provedor
da Casa de Fundição no governo Caldeira Pimentel e provedor dos quintos
(impostos) no tempo do governador Rodrigo César de Meneses. Surgiram denúncias
de que Rego sempre levava duas oitavas de ouro de quem pagava os quintos,
“dizendo que era pelo seu trabalho”.
Vale
concluiria ainda que o governador Pimentel protegia o provedor da Casa de
Fundição. Rego foi acusado de fazer grandes negócios com sonegadores e de
marcar e fundir ouro fora da Casa de Fundição. Na tentativa de denunciar o
governador, João Leite Ortiz viajou para Portugal mas no navio teria sido
envenenado por um padre, “verdadeiro bandido, coberto de crimes praticados em
Mato Grosso”, conforme relatou o historiador Taunay.
No
livro, Adelto Gonçalves refuta o conceito da historiografia tradicional de que
a capitania de São Paulo estava isolada em relação às demais regiões da América
portuguesa e despovoada naquela época, em torno de 1748. Hoje esse conceito
está sendo revisto, segundo o autor. São Paulo não dispunha de uma economia
pautada na grande lavoura e na monocultura escravista, tampouco na extração
mineral, mas teve participação decisiva em direção ao Oeste e à descoberta das
minas de ouro no final do século XVII, além de ocupar uma estratégica posição
no entroncamento de importantes circuitos regionais, terrestres e fluviais, o
que pesou decisivamente no desenvolvimento da capitania.
SOBRE
O AUTOR
Adelto
Gonçalves, 68 anos, é jornalista desde 1972, com passagens pelo jornal Cidade
de Santos, do grupo Folhas, A Tribuna, de Santos, O Estado de São Paulo
(Estadão) e Folha da Tarde, além das editoras Abril e Globo.
Doutor
em Letras na área de Literatura Portuguesa pela USP e mestre em Língua Espanhola
e Hispano-americana pela USP, é autor de Gonzaga, um poeta do iluminismo
(Editora Nova Fronteira), Bocage, o perfil perdido (Editora Caminho, de
Lisboa), Mariela Morta, contos (Ourinhos, Complemento, 1977),
Os Vira-latas da Madrugada, romance (Rio de Janeiro, José Olympio, 1981;
Taubaté-SP, Editora Letra Selvagem, 2015), Barcelona Brasileira, romance
(Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2003), Fernando
Pessoa: a Voz de Deus, artigos e ensaios (Santos, Editora da Unisanta, 1997);
Tomás Antônio Gonzaga, estudo biográfico-crítico (Rio de Janeiro/São Paulo,
ABL/Imesp, 2012); e Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial
– 1709-1822, ensaio histórico (São Paulo, Imesp, 2015).
Ganhou os prêmios Assis Chateaubriand de 1987 e
Aníbal Freire de 1994 da ABL. Em 2013-14, com bolsa da Unip, desenvolveu o
projeto que resultou no livro O reino, a colônia e o poder: o governo Lorena na
capitania de São Paulo 1788-1797.