segunda-feira, 10 de agosto de 2020

As relações de poder no reino das falcatruas

Livro de 405 páginas focaliza SP no período colonial
Novo livro de Adelto Gonçalves revela subterrâneos da capitania de São Paulo no governo Lorena

Nelson Urt

Um escândalo: o caso das arcas que ao serem abertas diante do rei continham chumbo no lugar de ouro.  Um profano: o frei capuccino que usava o dinheiro das esmolas para levar confortável vida de senhor de escravos. Uma caçada: a perseguição aos irmãos Leme, aos quais o governo atribuía uma lista de crimes em Cuiabá e Itu. Uma amante: Lorena era filho dos Távora ou fruto de um envolvimento adúltero do rei?

Fascinantes histórias de conflitos, perseguições e falcatruas percorrem os subterrâneos, mas vem à tona em cada capítulo de O reino, a colônia e o poder – O governo de Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imprensa Oficial do Governo do Estado de São Paulo, 2019) graças à astúcia investigativa de quem já frequentou as principais redações de jornais de São Paulo, como o escritor Adelto Gonçalves.

Adelto: faro de repórter e texto elucidativo 
O aguçado faro de repórter se completa por meio do texto leve e elucidativo, e assim Adelto Gonçalves consegue romper com os padrões e clichês adotados por outros historiadores ao montar um curioso painel sobre as relações de poder e suas influências – oficiais, extraoficiais e clandestinas – de um período do colonialismo que representou a consolidação de São Paulo como cidade e de Cuiabá como vila.

A construção da Calçada do Lorena, estrada que ligava São Paulo a Santos por um trecho da Serra do Mar, é a marca principal do governo de dom Bernardo José Maria da Silveira e Lorena. Mas o livro vai muito além das edificações e estratégias para permitir que São Paulo fique mais próxima da Coroa, driblando a interferência econômica e política do Rio de Janeiro - ao reunir episódios do recorte de nove anos do governo Lorena em São Paulo.

Lorena foi o mais jovem capitão-general a governar a capitania de São Paulo: tinha 32 anos ao desembarcar e tomar posse em julho de 1788. Seria filho de Nuno Gaspar de Távora, irmão do marquês de Távora, e de sua segunda mulher e cunhada, dona Maria Inácia da Silveira. É o que diz seu assento de batismo, lavrado em Lisboa, segundo o autor. Faria parte da primeira nobreza portuguesa com ascendentes em uma das mais distintas famílias da França, os Lorena. Pelo menos era essa a informação oficial porque sempre correram rumores de que seria filho adulterino do rei dom José I com sua amante, a marquesa Teresa de Távora e Lorena, esposa do jovem marques dom Luis Bernardo de Távora.

Baseada em primorosa documentação histórica, o autor desvela as raízes da corrupção e malversação do dinheiro público no Brasil em uma situação análoga aos tempos atuais de um País que parece condenado a viver preso ao passado tortuoso da Colônia e à cultura da propina, do suborno e da barganha.

Nesse aspecto, há o risco de vermos a corrupção como fruto exclusivo da política, conforme alerta o sociólogo Jessé de Souza em A elite do atraso (2017). “A população (...) foi convencida de que existe corrupção apenas na política – essa é a corrupção dos tolos – e não enxerga a corrupção real, a corrupção no mercado, o problema central, que é a manutenção de uma sociedade desigual”, afirma.

A capitania passou nas mãos de antecessores pouco confiáveis antes da chegada de Lorena. Um deles foi Antônio da Silva Caldeira Pimentel, um dos raros governadores coloniais que se transferiram para o Brasil com a família, conforme revela o autor. Pimentel chegou em 1727 e um ano depois já estourava o escândalo que apressaria sua queda. “Em Lisboa, quando as autoridades metropolitanas, à frente de dom João V, abriram arcas recém-chegadas do Brasil com 7 arrobas de ouro dos quintos reais, descobriram, estupefatas, que ali só havia chumbo”. Obra de Pimentel e seus protegidos, entre eles Sebastião Fernandes do Rego, definido pelo historiador Afonso de Taunay como “aventureiro da pior espécie”.

O ouvidor-geral da comarca de São Paulo, desembargador Francisco Galvão da Fonseca, abriu a devassa para apurar os nomes dos responsáveis pelo descaminho. Logo as suspeitas pairaram sobre homes de confiança do governador Pimentel, conforme descreve o escritor. “Mas a corrupção era praga tão disseminada por todo o corpo do Estado que o primeiro a cair foi o próprio ouvidor-geral Fonseca, suspenso de suas funções e preso por ordem do juiz do Fisco do Rio de Janeiro. Era acusado de numerosas falcatruas”, conta Adelto Gonçalves.

O juiz de fora da vila de Santos, Bernardo do Vale, assumiu as investigações e concluiu que o autor do delito havia sido Sebastião Fernandes do Rego, provedor da Casa de Fundição no governo Caldeira Pimentel e provedor dos quintos (impostos) no tempo do governador Rodrigo César de Meneses. Surgiram denúncias de que Rego sempre levava duas oitavas de ouro de quem pagava os quintos, “dizendo que era pelo seu trabalho”.

Vale concluiria ainda que o governador Pimentel protegia o provedor da Casa de Fundição. Rego foi acusado de fazer grandes negócios com sonegadores e de marcar e fundir ouro fora da Casa de Fundição. Na tentativa de denunciar o governador, João Leite Ortiz viajou para Portugal mas no navio teria sido envenenado por um padre, “verdadeiro bandido, coberto de crimes praticados em Mato Grosso”, conforme relatou o historiador Taunay.

No livro, Adelto Gonçalves refuta o conceito da historiografia tradicional de que a capitania de São Paulo estava isolada em relação às demais regiões da América portuguesa e despovoada naquela época, em torno de 1748. Hoje esse conceito está sendo revisto, segundo o autor. São Paulo não dispunha de uma economia pautada na grande lavoura e na monocultura escravista, tampouco na extração mineral, mas teve participação decisiva em direção ao Oeste e à descoberta das minas de ouro no final do século XVII, além de ocupar uma estratégica posição no entroncamento de importantes circuitos regionais, terrestres e fluviais, o que pesou decisivamente no desenvolvimento da capitania.

SOBRE O AUTOR

Adelto Gonçalves, 68 anos, é jornalista desde 1972, com passagens pelo jornal Cidade de Santos, do grupo Folhas, A Tribuna, de Santos, O Estado de São Paulo (Estadão) e Folha da Tarde, além das editoras Abril e Globo.

Doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela USP e mestre em Língua Espanhola e Hispano-americana pela USP, é autor de Gonzaga, um poeta do iluminismo (Editora Nova Fronteira), Bocage, o perfil perdido (Editora Caminho, de Lisboa), Mariela Morta, contos (Ourinhos, Complemento, 1977), Os Vira-latas da Madrugada, romance (Rio de Janeiro, José Olympio, 1981; Taubaté-SP, Editora Letra Selvagem, 2015), Barcelona Brasileira, romance (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2003), Fernando Pessoa: a Voz de Deus, artigos e ensaios (Santos, Editora da Unisanta, 1997); Tomás Antônio Gonzaga, estudo biográfico-crítico (Rio de Janeiro/São Paulo, ABL/Imesp, 2012); e Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial – 1709-1822, ensaio histórico (São Paulo, Imesp, 2015).

Ganhou os prêmios Assis Chateaubriand de 1987 e Aníbal Freire de 1994 da ABL. Em 2013-14, com bolsa da Unip, desenvolveu o projeto que resultou no livro O reino, a colônia e o poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797.

 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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