sexta-feira, 3 de agosto de 2018

Audiência ajuda sociedade a tratar migrantes haitianos


Professor haitiano destaca oportunidade de seguir estudos na UFMS 
Nelson Urt

Os haitianos escrevem diferentes roteiros entre nós: dramas, conflitos, superação, racismo, preconceito, sobrevivência, desconfiança. Quase nada falta na vida de um migrante que deixa o seu país para buscar novos sonhos e compromissos em um mundo estranho. Nada que seja privilégio dos haitianos, porque neste momento há milhares de outros migrantes na mesma situação, em outros países, inclusive brasileiros, que passam pelas mesmas privações e provações nos Estados Unidos da América e na Europa. 
Só para atualizar a memória: o brasileiro Jean Charles de Menezes morreu assassinado pela polícia inglesa – a Scotland Yard – ao ser confundido com um terrorista, no metrô de Londres. Sua morte, em 2005, reacendeu a discussão em torno da discriminação contra os migrantes, e virou filme.
Promovida pelo Ministério Público Federal (MPF), uma audiência pública neste 3 de agosto na unidade 3 da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), no Porto Geral, discutiu a situação e elaborou propostas para o acolhimento de migrantes haitianos em Corumbá – até julho era cerca de 300. Não muito tempo atrás qualquer que fosse o migrante era tratado como uma ameaça para a segurança nacional, mas a nova Lei da Migração tratou de corrigir esse atentado contra a cidadania. Hoje o migrante é respaldado pela mesma lei que assegura os direitos a  um cidadão brasileiro. 
Circuito de Apoio ao Imigrante pede capacitação em idiomas
Esse foi o tema central da audiência pública: MPF, MPE, Defensoria Pública, Circuito de Apoio ao Imigrante da UFMS, Pastorais da Mobilidade e do Imigrante, Comissão Provisória de Apoio aos Refugiados Haitianos da OAB/MS – cada entidade, representada na mesa de debates, procura fazer a sua parte para que os direitos dos migrantes sejam respeitados.

Uma das propostas mais interessantes – e com necessidade urgente – seria a criação de um centro provisório de acolhimentos para centralizar os serviços aos migrantes, já que as instituições sociais não estão devidamente aparelhadas. A Casa de Passagem, por exemplo, possui apenas 22 leitos. Mesmo assim informa que atendeu 407 pessoas de janeiro a julho deste ano. Já o Centro POP da Prefeitura, criado para atender a população de rua, agora atende os migrantes mas faltam recursos e instalações apropriadas. 
Os haitianos estão espalhados por pousadas e casas de famílias. Uma senhora chegou a abrigar mais de vinte haitianos em sua modesta casa no bairro Centro América.
A comunicação é um dos principais entraves no diálogo e inclusão dos migrantes haitianos, que falam os idiomas criolo e francês. Os que antes de chegar ao Brasil permanecem por algum tempo no Chile já conseguem se comunicar em espanhol. 
Um deles virou tradutor e professor em Campo Grande: Wadner Absalonk. de 29 anos. Há quatro anos no Brasil, Wadner conclui o curso de Letras na UFMS, já fala o português fluentemente e dá aulas de francês dentro de um projeto da faculdade. É também o tradutor do criolo, idioma falado pelos haitianos. “Se formos ver claramente, o problema dos haitianos é pequeno frente aos dos outros migrantes pelo mundo”, afirmou Wadner. “Sem contar a afinidade que temos com o Brasil: os haitianos gostam muito do país e quase todos torceram pela seleção brasileira na Copa do Mundo”.

Haitianos Dulcé e Wadner: casos de superação e sucesso
Se Wadner representa o papel sonhado por todo migrante, o caso de Dulcé Du Verlus, de 42 anos, se enquadra no roteiro de drama,  sofrimento e superação. Pedreiro de formação, ele já estava trabalhando havia dois anos em Santa Bárbara do Oeste, interior de São Paulo, quando decidiu voltar ao Haiti para buscar a família. Na viagem de volta, já ao lado da esposa Roselene e d filho Deuvensley, foi chantageado e perdeu tudo o que tinha no ônibus – dinheiro e documentos. Chegou nesta quinta-feira a Corumbá para recomeçar do zero. “Quero voltar para Santa Bárbara onde já tenho contatos e posso trabalhar como pedreiro”, contou.
Tanto Wadner, que hoje é presidente da Associação dos Haitianos em Campo Grande, como o pedreiro Dulcé são exemplos latentes de que a oportunidade gera transformação, em pouco tempo, na vida dos migrantes. Parece haver de cada representante de entidade e do poder publico um esforço de alteridade, um olhar de compreensão sobre o próximo. Assim vai ficar mais fácil atender o que eles pedem. “Não nos vejam apenas como migrantes ou problemas, mas como um braço a mais no crescimento do Brasil”, afirmou um haitiano, tradutor de idiomas há quatro anos em Mato Grosso do Sul.


MPF aponta propostas


Leia trecho com conclusões do MPF de MS sobre a audiência pública:


Defensoria Pública da União, Ordem dos Advogados do Brasil, Ministério Público Estadual, Polícia Federal, Receita Federal, UFMS, poderes executivo e legislativo municipal, poder executivo estadual: todos estiveram representados e fizeram questão de pontuar as atribuições que lhe cabem, tanto a título de esclarecimento quanto, de certa forma, prestação de contas. Mas foram os representantes da sociedade civil que despertaram as reações mais efusivas dos presentes. A dona de casa que, de março para cá, abrigou mais de 300 haitianos debaixo do próprio teto, contando apenas com algumas doações. A dona de hotel que abrigou outras centenas, oferecendo teto e refeição, inviabilizando o próprio negócio diante de tantas pessoas acolhidas no saguão e no estacionamento. O padre que viabilizou boa parte disso tudo, angariando doações, recebendo, organizando e garantindo o mínimo de dignidade a essas pessoas. Esses três casos, dentre tantos outros, ilustram a gravidade da situação e levantam os dois principais problemas enfrentados pelos imigrantes: abrigamento e regularização de documentos. Foram esses os pontos mais debatidos durante a audiência pública e que nortearam os encaminhamentos dela. Das discussões, resultou a possibilidade de fortalecimento de uma rede que permita, daqui em diante, o enfrentamento das dificuldades decorrentes de um novo fluxo migratório inesperado. Segundo a procuradora da República Maria Olívia Pessoni Junqueira, a audiência terminou com uma série de propostas concretas. “Houve algumas propostas de utilização de recursos oriundos de Termos de Ajustamento de Conduta, do Poder Judiciário, houve propostas de parceria entre universidades e o poder público para oferecer, por exemplo, um intérprete, para sanar a dificuldade linguística, propostas de inclusão do movimento negro e dos próprios haitianos no debate, a utilização eventual de recursos humanos das forças militares nos momentos de crise para atendimentos de saúde. Esses foram alguns dos encaminhamentos práticos da audiência”.


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