Nelson Urt
A resposta está clara e evidente em A Elite do Atraso – da
escravidão à Lava Jato, livro do sociólogo Jessé Souza: os brasileiros se
deixaram colonizar por uma concepção racista e arbitrária que os inferioriza e
lhes retira a autoestima. E hoje vivem numa sociedade perversa e excludente
derivada da escravidão. A imensa maioria dos brasileiros é tratada como “ralé
de novos escravos”, à qual pouco se permite o acesso aos bens de consumo. Lançada em 2017, a obra já previa a ascensão da violência
fascista derivada da criminalização da esquerda, dos ativistas sociais, das minorias, do negro e do pobre, ódio este que vem produzir e
potencializar um candidato à República que congrega a violência em estado puro
e ameaça a democracia no País.
A Elite do Atraso, portanto, trata-se de excelente fonte
de informação e argumentação para leigos ou estudiosos, para o leitor, o
eleitor, o contribuinte, enfim, o cidadão brasileiro ainda disposto a refletir e
entender o seu passado, contestar e discutir o seu presente e decidir que
caminho tomar para um futuro digno.
A construção de uma
elite toda poderosa que habitaria o Estado só existe, na realidade, para que
não vejamos a elite real, que está “fora do Estado”, alerta o autor. Combater a
corrupção de verdade seria algo como combater a rapina, pela elite do dinheiro,
da riqueza social e da capacidade de compra e de poupança de todos nós para
proveito dos oligopólios e atravessadores financeiros. “Essa elite nos faz de
imbecis, e usa a classe média para reproduzir seu discurso de dominação”, diz.
Diz mais: o “imbecil
perfeito” é criado quando ele, o cidadão espoliado, passa a apoiar a venda
subfaturada desses recursos a agentes privados imaginando que assim evita a
corrupção estatal. Como se a maior corrupção – no sentido de enganar os outros
para atingir vantagens ilícitas – não fosse precisamente permitir que uma meia
dúzia de super ricos ponha no bolso a riqueza de todos, deixando o resto na
miséria.
A corrupção real e a corrupção dos tolos
O autor busca lançar
uma luz sobre o que é corrupção real e o que é a corrupção encomendada. A
população, tratada como imbecil pelos meios de comunicação, foi convencida de
que existe corrupção apenas na política – essa é a “corrupção dos tolos”, e não
enxerga a corrupção real, a corrupção no mercado, o problema central, que é a
manutenção de uma sociedade desigual.
Nesse aspecto, ele é
enfático ao afirmar que a operação Lava Jato é uma farsa e que o controle da
informação do País, capitaneado pela Rede Globo, que pauta outros órgãos de
comunicação, contribui decisivamente para impedir a formação de sujeitos
autônomos e com opinião própria. “O mecanismo principal desse tipo de dominação
é uma imprensa desregulada e venal, que vende uma informação e uma
interpretação de vida social enviesada pelos interesses do pacto antipopular”,
afirma. “Bolsonaro é filho legítimo da Rede Globo e da Lava Jato”, define.
E continua: “A Globo é
a roupagem perfeita para um capitalismo selvagem e predatório que chama a si
mesmo de emancipador e protetor dos fracos e oprimidos”, acrescenta. “Aqui se
chama favela de comunidade, como se com isso a vida prática dessas pessoas
pudesse melhorar pela magia da palavra bonita que espelha uma mentira”, diz.
Cita a Globo como a emissora eleita para ser parceira da CBF e da FIFA, alvos
de uma devassa em negócios escusos durante décadas no futebol.
Lembra que só em uma
transação relativa aos direitos de transmissão da Copa de 2002, a Globo teria
sonegado, segundo auditoria da Receita Federal, em intrincado esquema de
ocultação em paraísos fiscais, R$ 358 milhões ao fisco. “Fica explicado por que
esse tipo de corrupção jamais aparece na Globo News”.
Coloca como exemplo de
corrupção real a recente operação do governo Temer, “uma marionete da elite do
atraso”, que fez o País e a Receita Federal perderem R$ 25 bilhões em decisão
suspeita em favor do banco Itaú. “Só nessa operação – diz – carregada de
suspeição envolvendo denúncias de venda de votos, o País perdeu 25 vezes mais
que o recuperado pela “corrupção dos tolos” da Lava Jato”.
O autor cita ainda os
R$ 520 bilhões em paraísos financeiros, fruto da sonegação fiscal dos
milionários, e o fato crônico de termos a maior taxa de juros do planeta há
décadas, embutida em tudo o que compramos. Créditos esses que somam 15% do PIB
ou R$ 1 trilhão todos os anos, segundo dados do Banco Central. Certamente uma
grandeza em torno de 800 ou 900 vezes superior ao montante orgulhosamente
recuperado pelos paladinos da justiça da Lava Jato, “a farsa principal da
corrupção dos tolos”.
A criminalização da esquerda
A Elite do atraso
segue a linha de outros livros publicados anteriormente pelo autor – A tolice
da inteligência brasileira e A radiografia do golpe – e descortina de maneira
criativa e cortante o papel de nossas elites, denunciando o pacto sedimentado
pelos donos do poder para perpetuar uma sociedade excludente e perversa,
forjada ainda na escravidão. “Com o cidadão feito de completo imbecil, é fácil
convencê-lo de que a Petrobrás, como antro da “corrupção dos tolos”, só dos
políticos, tem de ser vendida aos estrangeiros honestos e incorruptíveis que
nossa inteligência vira-lata criou e nossa mídia repete em pílulas todos os
dias”, conclui.
Trata-se de um livro
essencial porque amplia as discussões em torno de uma maior compreensão sobre o
Brasil contemporâneo, onde as classes populares são exploradas e reprimidas
cada vez mais com maior violência, onde a questão social continua sendo tratada
como caso de polícia e a classe média conservadora é usada para reproduzir as
ideias do poder dominante. E deixa um ponto de reflexão na democracia em vigor:
feliz é aquele que não pertence a essa massa de manobra, a esse Brasil em que
uma grande parte da população é tratada como imbecil.